Já tinha recebido um comunicado do meu amigo Gil Gune sobre um concerto intimista de um tal de Remna ao lado de Stewart Sukuma. Fiz o que o meu bom amigo queria – publicar a matéria na “Entre Aspas”. Quando recebi o texto, curiosamente, o termo “tesouro africano”, referindo-se ao guineense, prendeu-me os sentidos por alguns minutos, mas dispensei tal acto. Pensei comigo mesmo: é esta mania de querermos que os nossos eventos sejam bem-vistos.
Em algum momento, não sei a que procura, cruzei-me com Gune a arrumar o palco do X-Hub, ou, pelo menos, fingindo tal exercício, e o tranquilizei sobre a publicação do seu texto. Não pelo Remna, claro, mas por ele próprio. Sobre Remna não sabia nada, até àquela altura. Fiz uma visita rápida à internet, mas era urgente publicar aquilo que (já) tinha, porque o concerto seria para a noite do mesmo dia, 16 de Setembro.
As poucas coisas que descobri, nesta minha curiosidade jornalística, foi o seu apelido (e um par de músicas): Schwarz. Mas achei que fosse outra pessoa. Este apelido até estava algures no comunicado de Gune, mas, não sei porquê, preferi pensar que fosse outra pessoa. Como é possível um Schwarz de Guiné Bissau? Deve ter havido um engano. Só pode. Respondeu-me o meu subconsciente – nunca me deixa na mão.
Voltei ao escritório, ali mesmo no X-Hub (sim, Entre Aspas é um dos projectos em incubação criativa) e ignorei qualquer movimento do outro lado. Não via a hora de terminar as minhas tarefas e me escapulir. Estava exausto. Transpirando cansaço. Para além de “Entre Aspas”, nesta minha penosa rotina, cruzam-se Tindziva e Kuvaninga, para além de uma infinidade de pragas, ou melhor, ideias.
Chegou a hora: 19h00 e alguns rabiscos. Sai apressado, mas os passos não me davam força para correr. Estavam tomados pelo fardo do dia. Fui riscando o chão até ao portão. “Tchau”, despedi-me dos meus amigos-guardas, como faço todos os dias, na santa paciência que me leva aos meus aposentos. Responderam-me animadamente, como sempre, e disseram-me outras coisas que escaparam com o vento. De certeza, imagino, tem que ver com “bom descanso!”.
Quando comecei a respirar o perfume da Ahmed Sekou Touré, uma melodia fina interpelava-me os movimentos, vindo do interior do X-Hub. Olhei como quem não quer nada, mas, para além da boa música que escapava restaurante afora, um ambiente singular atraiu-me para o Xikhafo.
Entrei como quem só vou espreitar um pouco, um pouquinho… Mas quando dei por mim estava com o vídeo daquele guitarrista no Facebook da Entre Aspas. E esse guitarrista, meio-magro, meio-baixo; de roupas escuras – calças meio-justas e casaco meio-formal – era o tal de Remna. Então é este… disse para mim mesmo, já encantado com o que os seus dedos faziam nas cordas. Ainda que com uma desenvoltura reduzida não parecia cansar-se com a guitarra pendurada no seu ombro, soltando rasgos arrepiantes. A sua voz, que parecia imitar o timbre do instrumento comportado, revelava-me um homem fino, daqueles que nunca se altera com a esposa, mesmo quando esta o apronta todas.
A plateia, energética, subia o volume das vozes, gritava sem parar, batia palmas até as mãos doerem, mas o Remna continuava naquela suavidade de invejar, um verdadeiro galã – não só pelo aspecto físico. Tive a certeza – é mesmo um ‘tesouro africano’. Gune (desta vez) não mentiu. E a partir daquele momento não me perdoei por não o ter conhecido antes. Quase me enterrava quando Stewart subiu ao palco e revelou que se conhecem desde 2012. Cocei a minha cabeça grande e idiota. Mas fiquei tranquilo quando algo, talvez a árvore, disse o seguinte: “relaxa, ele é calmo demais que andou pelas sombras”.
Stewart Sukuma rasgou o palco literalmente com “Xitchuketa Marrabenta” e, no fim, “Felizminha”. E eu pensei: “o que será agora do meu Remna, que não anda em altos voos sonoros?” O menino-adulto conseguiu baixar as bolas, aliás, os sons, mas conseguiu, tal génio, manter a ‘boa vibe’, e, no fundo, era o que eu precisava – de melodias suaves, que funcionassem como bálsamo às minhas febres laborais. Esse tranquilizador musical que fugia da sua guitarra respeitosa não demorou muito, pois Xixel Langa fez questão de quebrar a loiça e quebrar “Malaika”. Lá do além, de certeza, Miriam Makeba (1932–2008) deve ter ficado beliscada, e quando ela inventou o passo de ir “para baixo” deve ter piorado o bem-estar da “Mamã África”. Só não foi pior porque Remna, mesmo com aquele ‘bum bum pá’ de Stélio Zoé conseguiu manter aquele seu estilo fino e melancólico. Quando a banda subiu ao palco, o músico guineense chamou-os de ‘Maravilha’, mas quando decidiram embarcar nas ‘loucuras’ de Xixel deve ter repensado no nome. Coitado de Nelton Miranda e Fernando Morte, que foram influenciados à ‘má vida’.
E lá fui para casa, saciado, mesmo pensando que só iria dar uma espreitadela de ‘aquela coisa’. Mesmo se fosse outro, o homem mais caseiro do mundo, não resistiria ao charme e classe de Remna. Dia seguinte, descobri, afinal, porquê daquele carácter: o rapaz que me arrepiou às entranhas é filho do poeta e guineense José Carlos Scharwz (1949 – 1977) e enteado de um diplomata, tendo, por isso, vivido em diferentes países, casos de França, Estados Unidos de América, para além de Guiné Bissau, país do pai, e Senegal, da mãe, onde nasceu, por sinal. E agora sou fã de Remna Scharwz. Pena que não esperei para um autógrafo. Haverá outro dia.

Elcídio Bila
Elcídio Bila é jornalista há 10 anos, escrevendo sobre artes e outros assuntos transversais. Tem passagens por dois órgãos de comunicação e diversos projectos de Media. Trabalha também como copywriter e Oficial de Relações Públicas em agências de comunicação. É fundador e director editorial do projecto Entre Aspas.