Naquela sexta, a mais fria de todo infernal inverno, os amigos voltaram a encontrar-se por acaso. Acaso que nada, essa foi a história que Raul contou ao seu melhor amigo da infância, o homem que anda sempre com a cintura ocupada.
- Que coincidência! – disse ele, meio envergonhado, por detrás dos óculos.
- Liguei-te e nada – reclamou o amigo, enquanto virava uma lata na boca e dois fios daquele líquido amargo gotejam na camisa branca. Depois de um tempo suficiente para a bebida desaparecer da garganta, voltou a denunciar:
- Mesmo a este nhonguista liguei – apontava ao outro amigo, meio cabisbaixo na roda. – Ao casado não me atrevi e com esta temperatura nem imaginava encontra-lo aqui, mas a vocês dois…
Parou de falar repentinamente, afinal é porque vira um casal de Polícias a atravessar a rua. O seu corpo até aceitou mergulhar entre os amigos, mas a cerveja na mão, ainda que vazia, denunciou o vexame:
- Chefe, como estás? – cumprimentou-lhe sorrindo, quando o candeeiro da estrada iluminou a lata vermelha, com rasgos de verde, amarelo, preto e branco.
- Estou bem, meus putos e desse lado? - respondeu desvergonhadamente. E como se não bastasse, convidou-lhes para a farra:
- pago duas apenas. E não me viram aqui.
Raul deu alguns passos falsos, dizendo em tom levantado:
- E não estavas comigo…
- Eu também – seguiu o casado, no mesmo ritmo dos passos.
- Nhonguista, aí de ti, não vais beber hoje – ameaçou ao último amigo, que ensaiava repetir o gesto.
- Estou calmo, irmão. Deixa estes… – amparou-lhe.
O polícia levantou a lata já amassada pelas suas mãos calosas, perguntando aos colegas se seria aquela a marca preferencial. A mulher abanou a cabeça, enquanto olhava para o seu par, que se escondia por detrás do chapéu.
- Ah, queres uma Cidra – perguntou, com uma porção de certeza. Ela voltou a abanar a cabeça, negativamente.
Ficou incrédulo. Alguns segundos em puro silêncio, só com uma respiração ofegante. Sim, o fanfarão tinha ficado sem palavras. Olhou pata o colega, como quem questiona alguma coisa, mas este levantou as mãos, em gesto de rendição, mostrando-se alheio ao assunto.
- Então, o que bebes minha amiga, xivotxongua? – troçou.
A polícia ajeitou a sua postura, preparando-se para atirar alguns berros, mas, imediatamente, chamou a sua aparência calma de volta e segurou a voz já na ponta do grito:
- J.C.
- O que? – explodiram os outros, antes concentrados na festança fria da noite, numa sombra das luzes. Aproximaram-se, um por um, para ouvirem de perto. Ela retocou a voz e confirmou, traduzindo:
- Champagne!
O chefe ficou desequilibrado por alguns instantes, mas depois tratou de resolver o assunto, não antes de ser advertido:
- A lata, rose!
- Não vos podem ver a beber aqui, portanto, entrem no carro e fiquem aí dentro – disse ele, com um ar cauteloso, logo que regressou do bar.
O Vanguard estava estacionado exactamente ali e um par de colunas estava por cima do carro, expulsando algumas batidas de kwassa kwassa. Dizem que depois que Raul se tornou director os seus hábitos musicais mudaram e já nem se aguenta a três amapianos seguidos. Embora a barulheira à volta fosse tanta, o Comercial preferia caçar a sua música minúscula. Chegava até à encostar o ouvido aos aparelhos, para que um Awilo Longomba não lhe escapasse.
O casal entrou no carro antes que o chefe repetisse o alerta. Aproximou-se do carro com duas garrafas. Uma delas era de J.C. Que nada!, o homem comprou streetons. A única coisa que acertou foi a cor: rosa.
A resistência não levou muito tempo, a polícia deu dois goles quase de uma única vez e pediu o terceiro num ápice. O colega, sem reclamar, entornava ao copo plástico uns quatro duplos. Para atenuar, uns cubos de gelo e refresco.
Não tardou que a sua voz aumentasse de volume. Até em assuntos sem graça, adicionava risadas desmedidas. Raul, quando se apercebeu do cenário, foi aumentar o volume. Em vão! Já não havia o que ampliar, apenas lhe restava fechar os vidros completamente, o que era impossível.
- Já deu! Os teus colegas devem sair do meu carro - determinou, olhando fixamente para o amigo-polícia.
- Raul, o teu problema é por óculos escuros à noite, nem te vejo meu amigo.
- Tu sabes, eu quero ver todas, mas elas não podem ver que lhes vejo.
- Epa, ser patrão te faz sofrer.
- O que me faz sofrer agora é ver os teus colegas de qualquer maneira no meu carro.
Falando nisso, já não havia vida no segundo banco do carro. As vozes altas e risadas desmedidas tinham-se calado, milagrosamente. Os quatro amigos foram a correr, a ver o que se passava. O casado tomou a dianteira, quase lhe caia o corpo redondo naqueles passos rápidos. O nhonguista ia a seguir, como se procurasse o próximo cliente e Raul vinha a seguir, mas devagar, embora mais assustado.
O chefe chegou depois, mas foi o primeiro a tomar atitude, batendo o vidro do carro. Quanto mais batia, mas acelerava os movimentos:
- Sofia?
O silêncio pairava dentro do carro, mas de fora o kwassa kwassa se embriagava com os amapianos do momento, soltos em outros carros estacionados.
- Marcos?
Não vinha vida lá de dentro. De ninguém dos dois.
Raul decidiu desbloquear o carro, já que ninguém se pronunciava e a imagem que viram deixou-lhes incrédulos, entre tristes e felizes: Sofia estava de boca aberta, braços abertos e pernas abertas, ou melhor, tudo aberto. Marcos, por sua vez, tinha os braços cruzados, pernas cruzadas e o corpo todo cruzado.
Raul não fechou a porta do carro sem que todos notassem que as suas calças estavam abaixadas e a Sofia… a Sofia… a Sofia… já nem roupa tinha.

Elcídio Bila
Elcídio Bila é jornalista há 10 anos, escrevendo sobre artes e outros assuntos transversais. Tem passagens por dois órgãos de comunicação e diversos projectos de Media. Trabalha também como copywriter e Oficial de Relações Públicas em agências de comunicação. É fundador e director editorial do projecto Entre Aspas.