I
A teoria do cão – como aqui se intitula – é um pensamento que não se faz de científico, posto que não se apropria de nenhum método cientificamente válido para se chegar a provar-se e consolidar-se como uma teoria propriamente dita. No entanto, ela parte de observações empíricas do comportamento canino que, observando o comportamento humano numa perspectiva política das nossas realidades sócio moçambicanas, chegam a partilhar traços comuns que podem deslocar-se para uma direcção teórica que pode ser desenvolvida nos estudos e análises políticas.
Há dois traços comuns dos cães: não importa a época nem o lugar, todo o cão abana o rabo ante o seu dono; não importa a situação e o contexto, todo o cão lambe as botas do seu proprietário (não são as quatro patas, o focinho preto, as orelhas tesas e o rabo longo que distinguem o cão dos outros mamíferos, são sim as suas atitudes que o diferem dos outros animais – e isto aplica-se também nos seres humanos). Não há sequer uma injustiça que se faça sentir sobre ele quando tal for investida pelo dono; todo o ato, seja de justiça ou de injustiça é digno de gratidão e louvor que se expressam por meio do baile do rabo e de lambidos das botas do proprietário. O único inimigo do cão é o elemento externo – aquele que abre as portas do seu cárcere, mesmo que tal venha com intenções de libertá-lo do servilismo (por qualquer razão ou gesto, este partirá a ladrar ou mesmo a devorar qualquer um que atentar contra a falsa integridade do seu dono).
Os seus impulsos, os seus nervos estão sempre à flor da pele; todo o seu acto está revestido de previsibilidade como as manobras de um automóvel; e é de fácil dominar tudo o que é previsível e tudo que se encontra à superfície. Não nos admira, por exemplo, que o seu latir e sobretudo a exibição e o tinir dos seus dentes denotem um perigo eminente e que basta um só osso ou, quando muito, um naco de bife podre, ou mesmo um spray de pimenta para arriar os seus ânimos – para o dono não é preciso tanta mestria para dominá-lo, nem para o invasor é preciso tanta ciência para enganá-lo (antes que se transpareça a sua raiva, o seu perigo, o seu ódio, a sua intolerância, a sua peçonha, um saco de ossos basta para domá-lo): eis a razão de ser um amigo fiel e grato ao seu dono e simultaneamente o ser mais desprezível ante os seus olhos.
Destaque-se aqui a sua relação invejosa com o gato. O gato que se singulariza pela sua macieza, afabilidade, higiene e requinte, pela sua meiguice no ato e no verbo, deita-se sobre as mansas almofadas do seu criador (dono); passeia nos lugares íntimos da casa do homem exibindo pompa e classe, alimentando-se de forma cerimoniosa e transmitindo apreço e inofensividade; no entanto, este não se verga ante as injustiças do seu dono; este delimita o seu espaço e garante a sua integridade; mesmo diante de toda a comodidade e fartura, este sai e busca o próprio alimento, pois entende e sabe que tudo que o seu dono serve não passa de uma simples sobra e obra de caridade. O mesmo não se pode dizer do cão que passa dias e séculos estendido sobre os próprios braços esperando que o dono o leve para passear no aperto de uma coleira recolhendo as migalhas que o homem vai deixando pelo atalho.
Regra geral: o valor da nossa humanidade não é um dado, é uma conquista; aquele que se contenta com o pouco submete-se à mendicidade; é comum dos homens superiores e dos regimes de todos os tempos domar e acorrentar os seus semelhantes (os seus povos), justo porque no fundo nada de valor possuem senão o seu despotismo, avareza e gulodice; é a maneira mais acertada por eles achada para perpetrar o seu poder; aquele que se submete às injustiças e contenta-se com as migalhas, a sua vida não passa de mera vida biológica de um cão.
II
Volvidos cinquenta anos após a publicação da obra Nós matámos o cão tinhoso de Luís Bernardo Homwana, em 2014 decidiu-se se lançar a sua 2ª edição que chega a ganhar uma representação simbólica tanto no âmbito filosófico assim como no âmbito teológico, a termos que considerar os conceitos “futurologia” e “profecia”. Esta reedição situa-se no centro da transição de uma década para outra caraterizadas por maus ciclos de governação. A primeira década é aquela que todos conhecemos que se ergueu com um chão de barro suspenso e um teto de cristal que bastava só um poiso de uma andorinha para termos o teto todo desabando sobre as nossas cabeças e apinharmo-nos num calabouço imprevisto. A segunda é aquela constituída por promessas e ilusões que todos nós comprámos; é aquela que deu ao povo uma falsa soberania; uma soberania perversa decorada com versos líricos que afaga a ferocidade de qualquer fera “o povo é o meu patrão”, “no meu coração cabem todos os moçambicanos”; é aquela que se enquadra melhor na parábola do mau avicultor, em que este, além de alimentar as aves, vive a custa do sangue das mesmas em conluio com a sua horda de sanguessugas, deixando, no final do dia e do contrato, todas as aves em ossadas.
Assistiu-se no minguar da segunda década a resposta de como um povo se pode mal governar; de como os valores morais de uma sociedade se podem perder sem precedentes; assistiu-se a encenação cinematográfica do terror urbano onde o terrorista é a força policial e os alvos é o povo, isolando-se, sobremaneira, o valor precioso da vida; assistiu-se ainda o arremesso das pedras contra o vidro das nossas janelas e ver-se a República a ruir de forma galopante com uma plateia cujos espectadores é uma assembleia representante de um povo e a respectiva franja extensiva na nossa plebe, a aplaudirem com glamour; demonstrou-se com clareza o quão os direitos humanos podem se transformar em um conceito abstracto e inaplicável numa realidade isolada, justo porque a repreensão, o medo e o terror são o modelo e o método implantados e cimentados para a governação de um povo.
A ideia de que “cada qual por si; Deus para/por todos” permitiu o florescimento nauseabundo de uma geração de jovens cheios de ganância e egoísmo, à qual com dolo e desdém também pertenço. Juntou-se a esta ideia perniciosa a palavra regimental segundo a qual “a única forma de ascender ao poder é por meio do partido no poder”, isolando-se, desta feita, a competência e a meritocracia – construiu-se a ideia de que todo cidadão que não se identificasse com as ideologias do partido no poder era inimigo da Nação. Em resposta deste regimento, assistiu-se uma corrida desenfreada de incompetentes e criminosos a entulharem os lugares de decisão e de gestão do nosso Estado, fragilizando de forma galopante a nossa República, que já vinha com sintomas virais desde a primeira República, sendo que Chissano foi o pioneiro no aniquilamento do Estado com a premissa segundo a qual “o cabrito come onde está amarrado”.
Os conceitos como «dever cívico», «patriotismo», «solidariedade» e «humanismo» perderam o seu significado tradicional e universal entre o povo. Os dois últimos pararam de circular nas páginas do subconsciente juvenil, entanto, os outros primeiros remaram a favor do Regime sendo transmitidos por meio de manuais escolares estéreis de conteúdo e comícios partidários; instruiu-se uma maneira subversiva de encarrar a realidade, caindo naquilo que chamo de “Síndrome de palas” ou a incapacidade de olhar o mundo de maneira crítica – o que desagua naquilo que Frantz Fanon chamou de Política de Imobilidade, ou seja, “a recusa implantada de observar as coisas com objectividade”.
Os conceitos de “síndrome de palas” e da “Política de Imobilidade” enquadram-se melhor na “Teoria de Cão” que se pode explicar melhor da maneira seguinte: quanto mais abusado mais estima o seu dono.
III
A ideia misteriosa de “Eterno retorno” trazida por F. Nietzsche, segundo a qual “tudo o que se viveu se há de repetir outra vez” – ainda que não seja numa igualdade proporcionalmente matemática, digo eu – talvez venha a ganhar sentido com a reedição de Nós matámos o cão tinhoso. Estaríamos nós simultaneamente perante uma denúncia e uma manifestação flagrante do “Eterno retorno”?
Há, inegavelmente, uma coincidência relativa entre as razões históricas que culminaram com a sua edição e a situação histórica atual da República – acinte ou não – na qual se encontra submersa a sua reedição: o fuzilamento das elites intelectuais entre os quais políticos, jornalistas, poetas e académicos que se opunham contra o sistema colonial = o assassinato do jornalista Carlos Cardoso (2000), do economista Siba-Siba Macuácua (2001), do constitucionalista franco-moçambicano Gilles Cistac (2015), do jornalista João Chamusse (2023) entre outros e a perseguição política da intelectualidade crítica contra o Regime do dia, cujo pináculo se observou na Avenida Eduardo Mondlane na cidade de Maputo a 19 de Outubro de 2024 por meio da barbárie contra advogado Elvino Dias e do político Paulo Guambe; o assassinato em massa de moçambicanos que reivindicavam os seus direitos perante o seu opressor em Moeda = o baleamento de civis indefesos e a negação do direito à manifestação perante uma plateia em aplausos em Mecanhelas e um pouco pelo resto da República; a anulação do direito à vida; a existência de uma classe de elites que vive à fartura na retaguarda de uma população à mingua – são alguns exemplos que podem ser tomados como manifestação do eterno retorno de Nietzsche.
Estamos num flagrante “Eterno retorno”; ou por outra, o retorno do “Cão tinhoso” e que a história impera o seu aniquilamento e incineração. Quando uma política, um sistema se mostram retrógrados, inoperantes e ditatoriais é preciso forçá-los à boca da rua e admitir-se novas consciências e políticas governativas, até porque o Estado não só tem que ser governado pela consciência dos seus governantes, como também pelas leis da República; é preciso que as leis falem mais alto para que a tirania e a ganância dos governantes sejam domadas.
IV
Retomo o pensamento que mais discuti no segundo volume do inédito Os Nulos. Mas antes, valem as palavras de Frantz Fanon segundo as quais “Cada geração, dentro de uma relativa opacidade, tem de descobrir a sua missão, cumpri-la ou atraiçoá-la”. Num dos intervalos lúcidos, Graça Machel teria dito: é preciso que a juventude moçambicana perca o medo. Agora tenho mais do que a certeza que a minha geração ouviu o conselho materno, como também descobriu e está a trilhar o caminho da sua missão que é “matar e incinerar o Cão tinhoso” por meio duma revolução popular. E se este é o caminho que o povo escolheu, penso que o povo não poderá atraiçoá-lo. Digo incinerar o cão tinhoso por assumir justamente que, após o aniquilamento do cão tinhoso do século XIX a século XX, os assassinos do mesmo apoderaram-se dos ossos e de todo o seu ADN; confundiram as massas e retomaram a opressão das mesmas camuflados na tonalidade negra da pele e na ideia da construção do Homem novo.
Doem-me os escrúpulos e sinto uma náusea tediosamente física perante os posicionamentos públicos daqueles que os consideramos de guardiões da nossa moral desencantada. Somos duma geração que perdeu a fé política; que perdeu a fé nas instituições do Estado; somos uma geração traída por aqueles que nos venderam os sonhos e ilusões; somos duma geração toda angustiada e desesperada; somos uma geração entulhada numa miséria sem precedentes e sem tendência de fim; somos duma geração que lhe foi negada a democracia e os direitos universais da humanidade; pertencemos a uma geração silenciada, algemada e chicoteada por aqueles que detêm o poder de Estado; somos duma geração que lhe foi ensinada uma falsa história e uma ideologia corrompida. Que se espera desta geração pilhada, saqueada e oprimida durante décadas e décadas, após descobrir a sua missão que há muito foi exigida?
A arte, a intelectualidade e a imprensa
Falei dos espectadores e vale sublinhar aqui a Assembleia da República cuja função é questionável, os académicos (salvo alguma minoria bem achada), os artistas sobretudo cantores – cujo expoente máximo é o Mr. Bow com a sua horda de vestes brancas estendendo uma cortina de fumaça nos olhos do povo – escritores de renome nacional e internacional e os sequazes do Regime entulhados sobretudo na OJM que adulam a figura do Presidente da República e o respetivo sistema ditatorial mesmo ante as atrocidades e desumanidades contra o Estado.
Após longos anos de pilhagem, saque e opressão acho uma infelicidade nas palavras da nossa célebre escritora Paulina Chiziane – a quem é devida a maior vénia de todos – que na grande rubrica dominical da TV Sucesso “Moçambique em Concerto” apelou as mães a “educarem os filhos a não saírem às ruas para se manifestarem”, culpando, em outras palavras, as mães da revolução juvenil. Não sei que lhe deu nos escrúpulos para proferir tais palavras. Todavia, há perguntas que não querem calar: onde a velha Paulina esteve quando as mães falharam na educação dos nossos governantes?; que missão a velha Paulina desempenhou na educação dos nossos governantes?; qual foi o seu posicionamento quando os direitos humanos e a soberania do povo foram sequestrados e colocados ciclicamente em causa? Numa situação em que a nossa geração optou pela quebra das correntes e libertar-se do cárcere da opressão, estaria ela a aconselhá-la a recolher-se de volta a masmorra? Estaria ela a aconselhá-la a pautar pela Teoria do Cão, pela Política da Imobilidade ou pelo Síndrome de Palas aos quais os sequazes do Regime estão submersos?
Nota-se, com efeito, que a nossa anciã vai perdendo a bússola. Abandonou o cogito e aventurou-se na música – ah, que nos poupe desse espectáculo burlesco! Preferimos ler o Ngoma Yethu, à escutarmos a monotonia rítmica e melódica de Timbila ta mina. Cada macaco no seu galho, disse o velho ditado. Conhecemos os nossos génios musicais e tudo que emocionalmente vem não faz sentido e acréscimo. Aliás apossando-me do fragmento de Jeremias F. Jeremias, sobre o perigo da fala aos avessos racionais: “a boca deve reservar-se da integridade de todo o organismo que é o corpo, bem como o retrato que é a imagem construída socialmente”, Paulina deve parar de jogar pedrinhas para a sua própria cabeça.
De Mia Couto nada mais se pode dizer após aquela entrevista cheia de chocalhos e chilras, como sempre dele se nos habituou a nossa imprensa. Nem um vintém nos vale discutirmos os posicionamentos desfocados de José Eduardo Agualusa no jornal O Globo. Logo ele que tão pouco sabe discutir o flagelo sócio angolano, como pode observar com objetividade as realidades sociais dos moçambicanos? Verdade seja dita: Agualusa é tão inquilino na sua suposta própria pátria (Angola) como é um cego peregrino em terras moçambicanas onde buscou um alento romanesco. Como disse Circle Langa “a menopausa intelectual é violenta quando decide bater a porta; aliás, os tolos também envelhecem”. Para todos os efeitos e para ambos bastam as palavras do jovem português João Vasco Rodrigues no seu artigo Mia Couto. Jindungo para as línguas europeias.
Para a nossa intelectualidade, isto é, os nossos académicos, é urgente que tomem posicionamentos para o povo e pelo povo; envergonham-nos os Reitores das nossas Universidades que se têm mostrado tão gratos com o seu patrono; gratos com aquele que os nomeou para o preenchimento das vacaturas nos lugares onde o conhecimento é produzido. Estariam eles, à semelhança dos sequazes do regime, assolados pela teoria do cão ou pela política de imobilidade de F. Fanon? Entendemos que não há geração sem craques e nem há geração sem pulhas; entendemos também que os sistemas ditatoriais, em função dos seus interesses e das épocas produzem os seus génios; como também reconhecemos que em momentos de crise, a informação é uma carta segura a ser jogada pelo sistema, daí que a imprensa, sobretudo a RM, a televisão pública (TVM), as televisões privadas como a STV, a Miramar e recentemente a TV sucesso são hospedeiros do virais da informação tendo como artilheiros virais o Gil Aníbal, o Dércio Alfazema, Egídio Vaz e os seus constituintes. São intelectuais virais (que se diga sem receios), ou a bem dizer são os ditos academicús, reconhecidos e postos à solta pelo regime para o seu jogo e desfilando obrigatoriamente nas televisões com a única pretensão de confundir as narrativas, obrigando-nos por assim dizer, a desligar as Tvs.
E reflectindo sobre o peso e leveza discutidos por Milan Kundera, questionei-me reiteradamente: será que devemos ignorar e esquecer o peso da vida – ao qual propositadamente o Regime nos sujeitou – e assumi-lo ténue e passivamente como um condenado na mira da guilhotina onde o esforço e a agitação não resultam em nada? Neste circuito de peso será preferível gritarmos, apressando assim o nosso próprio fim? Ou calarmo-nos e comprarmos uma agonia mais lenta e eterna?

Harani Mahalambe
Harani João Mahalambe é natural da Maxixe, Província de Inhambane. É professor de profissão, licenciado em Ensino do Português pela UniSave-Maxixe e é Técnico da Casa Provincial da Cultura de Inhambane. É crítico literário e publica os seus artigos nas revistas nacionais “Mbenga” e “Entre Aspas”. Publicou “As doze varras”; “A patologia”; “As lesões”; “As ligaduras”; e “Ode aos Rostos Desabitados [e] Fragmentos do Escuro”.